quarta-feira, 29 de junho de 2011

A RENAMO e suas mudanças ideológicas na guerra¹

Valdir Alves²

            1. Introdução
Moçambique é um país da costa África Austral, situada na costa do oceano Índico, com cerca de vinte milhões de habitantes empobrecidos pela colonização portuguesa que desde seu início fez de Moçambique uma colônia de exploração.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, quando o mundo estava dividido entre dois grandes blocos econômicos, o capitalista e o socialista, as elites intelectuais moçambicanas, influenciadas por ideal marxista-lenista, fundaram a Frente de Libertação de Moçambique, (FRELIMO), que com exaustivas lutas contra os exércitos portugueses chegam ao poder em 1975, tornando Moçambique independente.
A FRELIMO que antes era apenas uma frente revolucionária agora tinha em suas mãos uma grande missão, um país com treze milhões de pessoas.
[...] mas as condições da luta e da vitória foram tais que os dirigentes da Frelimo herdaram o país sem nunca o terem visto confrontados com essa diversidade social, sem terem sido obrigados a assumi-la e a conceber politicamente os seus efeitos. Eles não dispunham praticamente de nenhum mecanismo político ou social de ligação que lhes permitisse reconhecer a existência dos diferentes componentes, por vezes contraditórios, da sociedade colonizada que lhes era dado governar...Foi de acordo com esta (falta de) perspectiva que foram formuladas os grandes eixos da “estratégia de desenvolvimento” do jovem estado para o mundo rural: a edificação das “aldeias comunais”. ( GEFFRAY, 1981;).

Paralelo as novas mudanças que vinham ocorrendo em Moçambique, chegam a Salisbury, capital da Rodésia, fugindo de Moçambique, comerciantes, pequenos proprietários, assim como ex-soldados.
Para a Rodésia, a independência de Moçambique constituía uma ameaça direta, pois dada a sua situação geográfica estava em condições de controlar o trânsito de grande parte das mercadorias importadas e exportadas, isso junto aos migrantes ressentidos e frustrados virou um ódio.
 Este ódio, junto com incentivo financeiro vindo de países capitalistas como EUA, fez com que se formasse uma tropa mercenária essencialmente composta de antigos soldados, essa milícia era a Mozambique National Resistance, (MNR), que tinha como principal finalidade combater a expansão socialista em Moçambique
A Mozambique National Resistance, assim que chega a solos moçambicanos, para ganhar simpatizantes, deixa de utilizar a sigla em inglês passando a ser conhecida como Resistência Nacional de Moçambique (RENAMO).
 A partir de então, não só a sigla é modificada mas também suas ideologias no que diz respeito  participação da RENAMO na  Guerra.

2. A Ideologia Capitalista e a Ideologia da Guerra. 
A RENAMO, em sua gênese, por ser composta de pequenos burgueses falidos e ex-soldados portugueses, recebeu recursos bélicos internacionais para que estes militassem e Moçambique deixasse de ser um país comunista, voltando, assim, a viver em um regime monopolista. 
Apesar de todo incentivo bélico e financeiro, a RENAMO logo deixou  seus ideais capitalistas para trás. Um dos motivos foi a estratégia de sobrevivência em solos moçambicanos. A RENAMO começou a atuar em cima da frágil política de modernização da FRELIMO.
A FRELIMO criou políticas que proibiam as práticas religiosas alegando que tais práticas impediam o desenvolvimento de um país em fase de construção. Outro ponto crítico na política da FRELIMO foi a criação das aldeias comunais, que eram aldeias de uso coletivo onde tudo que fosse produzido era dividido para todas as comunidades. Neste período as comunidades rurais eram mais de 80% da população moçambicana.
Diante deste quadro a RENAMO viu a possibilidade de conseguir apoio perante as comunidades rurais. O discurso imprimido foi o de que todos que apoiassem a milícia teriam a liberdade de cultuar suas tradições e não teriam que sair de suas terras para cultivar em terras alheias, como era o propósito das aldeias comunais. Já que as tradições consistiam no cultivo das suas próprias terras.
 A posição da mulher nestas tradições é de extrema importância, principalmente no que diz respeito a religião. Uma das múltiplas identidades assumida pelas mulheres moçambicanas é a de sacerdotisa. Este título é recebido através da possessão dos espíritos. Como diz Honwana, podemos considerar “os espíritos não só como agentes externos que controlam e mudam as identidades das pessoas, mas como a própria essência da identidade humana”.
Por ser a essência da identidade humana, estas mulheres que recebem em seus corpos os espíritos, acabam exercendo grande poder sobre a comunidade moçambicana. Poder que se estende sobre a RENAMO e até mesmo a FRELIMO.
A FRELIMO promove um discurso antitradicionalista, “rotulando-as [as tradições] de obscurantistas e superticionistas.” (HONWOANA, 2002). Imprimindo assim, uma ideologia na qual alegava que as práticas tradicionais não permitiriam a emancipação da mulher, ao contrário da RENAMO, que apoiava o exercício das práticas tradicionalistas
              3. A RENAMO e suas táticas de recrutamento.
             As comunidades apoiaram nos primeiros instantes as milícias, oferecendo alimentos e abrigos. Os jovens das zonas rurais sentiam vontade de entrar para a milícia, por que viam nela uma forma de ascensão. O recrutamento lhes proporcionava, por exemplo, privilégios que eles acreditavam ser os mesmos existentes  na capital, local  este inacessível para os que moravam  no campo.
Porém, a situação na RENAMO não era a que os jovens esperavam. Faltavam armas, porque, ao contrário do que eles pensavam, a RENAMO não possuía um arsenal bem equipado como o da FRELIMO. As armas existentes eram apenas para os comandantes e soldados, o que significa que estes jovens não possuíam qualquer status de poder. Outros privilégios existentes também não eram compartilhados com eles, como a divisão dos saques feitos no território da FRELIMO e as mulheres capturadas, que eram divididas somente entre os comandantes e os considerados soldados.
Os novos recrutas, não eram considerados soldados, não possuíam armas de fogo e nem regalias, o que despertava o desejo de voltar para casa, abandonando a milícia. Para impedir que isto acontecesse a RENAMO aprisionava, torturava e matava muito destes jovens, ocasionando, assim, uma baixa significativa de combatentes.
 Para recompor o seu exército, a RENAMO invadia as comunidades, que antes tinha jurado proteger, em busca de novos recrutas, o que gera um descontentamento dos parentes dos jovens. Para manter-se forte no combate a RENAMO começa a fazer investidas nas comunidades em busca de pessoas para serem integrantes da milícia.
Nestas investidas nas comunidades, eram seqüestrados crianças, mulheres e líderes espirituais, como foi o caso da líder espiritual Mwamadjosi que se tornou uma lenda. Segundo relatos, Mwamadjosi deu imunidade aos soldados que conseguiam tornar-se invisíveis diante dos soldados da FRELIMO, e imune a balas deflagradas por este.
Esta líder espiritual era respeitada até pelos líderes do governo. A história sobre esta mulher diz que ela alcançou um posto de oficial da RENAMO por causa das proezas alcançadas.
Diz-se que Mwamadjosi era muito competente na descoberta das posições  das tropas do Governo e na protecção dos combatentes da Renamo. Ela organiza rituais para imunizar os rebeldes contra as balas antes de partirem para incursões militares. Na Manhiçavmuitos informantes reconhecem os poderes de Mwamadjosi, dizendo que ela conseguia que as balas dos soldados governamentais falhassem o alvo e que suas armas encravassem em pleno combate. Alguns adivinhos e curandeiros locais referiram-se às dificuldades que tiveram para neutralizar os poderes de Mwamadjosi, pois, segundo eles, ela tinha acesso a plantas especiais das florestas de Mambone (a cerca de 400 km de Manhiça).    (HONWANA, 2002.)

Pouco a pouco a RENAMO foi perdendo sua ideologia inicial, pois via que a FRELIMO tinha dificuldade para implantar as novas mudanças sócio-políticas. Por ter uma política de orientação Marxista que direcionava para uma visão materialista da realidade social, deixava de fora todas as práticas tradicionais dos moçambicanos, tais como, as práticas de medicina tradicional como o nyanga (vulgarmente conhecido como curandeiro), e as práticas religiosas, tal como os rituais de chuva e da fertilidade, Kuphahla. Deixavam de lado também, o lobolo³ e as práticas poligâmicas.
A RENAMO obteve apoio da comunidade pois em seus discursos diziam que lutavam contra a FRELIMO, em busca  de uma política que resgatasse as tradições, e a comunidade rural por ter perdido a confiança nos lideres da FRELIMO apoiaram, de início, a RENAMO. 
No entanto, a comunidade rural não demorou a perceber que também não poderiam confiar na RENAMO, pois estes não tinham nenhum tipo de políticas. “Não estamos interessados em definir políticas (...) mais tarde teremos que delinear políticas, mas primeiros o comunismo tem que sair do nosso país. Está a matar-nos, temos que matar por tudo o que queremos. Matamos por comida, por comprimidos, por armas e munições”. (HONWANA, 2002).
Um pouco depois a RENAMO deixou também de ter como meta principal o combate ao regime comunista, usando a guerra pela guerra.
 Um ponto contraditório na RENAMO é o fato de terem mulheres participando em situação de chefia, ao mesmo tempo em que outras mulheres, até mesmo mulheres de suas ex-comunidades, eram violentadas e tinham seus órgãos sexuais amputados tal como os seios, e narizes e orelhas.

   4.Conclusão
           Em linhas gerais, a RENAMO conseguiu permanecer viva na guerra civil em Moçambique por agir como um “vírus mutante” que em cada fase da guerra assumia uma ideologia. No início, era uma milícia com ideias capitalistas posteriormente uma milícia que tinha em seu bojo um “projeto político” que visava à gênese da tradição moçambicana, e por fim a guerra pela guerra.
           A guerra termina com o Acordo Geral de Paz assinado em 1992. A RENAMO passa a participar das eleições em 1994. Ela perde com uma grande diferença de votos, mas se firma como partido político. Hoje a RENAMO é o segundo maior partido de Moçambique, ficando atrás da FRELIMO.
 O presidente é Afonso Dhlakama, ex-comandante do exército que enfrenta forte rejeição popular no país, pois sua imagem ainda é associada aos antigos ideais do apartheid sul-africano, que foi um dos financiadores da milícia na guerra contra a FRELIMO. A RENAMO ocupa hoje um terço das cadeiras no parlamento.

          5. Referências Bibliográficas

FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique). Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$frelimo-      (frente-de-libertacao-de-mocambique)>.

GEFFRAY, Christian. A causa das Armas (Antropologia da Guerra contemporânea em Moçambique). Porto, Afrontamento: 1991.


HONWANA, Alcinda M. Espíritos Vivos, Tradições Modernas: Possessão de Espíritos e Reintegração Social Pós-Guerra no Sul de Moçambique. Trad. Orlando Mendes; Promédia, 2002.

RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana). In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-06-13]. Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$renamo-(resistencia-nacional-mocambicana)>.

RENAMO (Partido Renamo: A Vitória é Certa!). Disponível em: http://www.renamo.org.mz/news.php

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Notas

¹Este artigo foi criado para a apresentação no Seminário Corpo e Cultura, realizado no Centro de Artes, Humanidades e Letras – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia –, no ano de 2010.


²Cientista Social em formação no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Educador de Ensino em Base Africana (EBA) no Grupo de Ação para Promoção Educacional Científico-Cultural (GAPECC). Membro do Grupo Corpo e Cultura da linha Corpo e Política. Membro também do Núcleo de Estudos Africanos do Recôncavo da Bahia (NEAB). Bolsista do CNPq, com o Projeto Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Políticas de Gênero e Sexualidade.

³Lobolo é uma prática tradicional da cultura moçambicana na qual o noivo oferece uma compensação material família da noiva, para que assim o casamento possa acontecer.

segunda-feira, 6 de junho de 2011


Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Centro de Artes Humanidades e Letras
Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura

Seminários: Corpo e Política
Desafios da Pesquisa:
A Experiência do Projeto Orun Aiyê¹



Valéria Noronha
Doutora em Serviço Social  (UFRJ)
Professora Adjunta CAHL/UFRB

Quando: 08 de junho de  2011 – 19:00hs
Onde: Pós-Graduação em Ciências Sociais - CAHL/UFRB (Prédio do Hansen)


¹ “Um Estudo Propositivo em Defesa da Saúde da População Negra no Recôncavo Sul Baiano”

sexta-feira, 3 de junho de 2011

O Preço da Noiva e o Homem Novo em Moçambique

Trabalho apresentado pelo professor Doutor Osmundo Pinho, orientador do Grupo Corpo e Política no I Encontro Internacional de Estudos Africanos da Universidade Federal Fluminense - UFF.
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I Encontro Internacional de Estudos Africanos do NEAF/UFF
Niterói, 16 a 20 de maio de 2011

O Preço da Noiva e o Homem Novo em Moçambique
Osmundo Pinho¹
osmundopinho@uol.com.br



Apresentamos neste artigo resultados parciais da investigação² sobre os significados modernos do preço da noiva, bridewealth ou, como em conhecido no Sul de Moçambique, lobolo. Os diversos significados socialmente atribuídos ao lobolo em Moçambique conectam-se com a própria história dos dispositivos políticos de regulação do corpo da mulher, da família e das relações de gênero, articuladamente aos processos mais amplos e complexos das transformações anticoloniais e da construção do Estado. O processo de reconversão dos significados em torno do lobolo, e da posição da mulher, na nova sociedade nacional moçambicana, construiu antagonismos e zonas de intercessão e disputa, onde confrontam-se feministas, defensores da tradição, o movimento de mulheres, e cenários políticos e culturais diversos, que incluem as lutas de libertação nacional, a construção do Estado socialista, a emergência da democracia de mercado e novos cenários pós-coloniais e neoliberais³.

É desse ponto de vista crítico que discutiremos a seguir fragmentos da etnografia moderna sobre o lobolo; a relação entre a construção do “homem novo” revolucionário e a emancipação da mulher; e a elaboração da nova Lei de Família em Moçambique, para interrogar os limites da antropologia no contexto pós-colonial e o papel do Estado na regulação das relações de gênero.

Lobolo Moderno
Pesquisas recentes abordam o problema do lobolo, procurando discutir como o meio urbano, em suas condicionantes, afeta, ou é crucial, para a construção e reprodução de relações de gênero e poder. O par dominação/relações de gênero aparece como eixo central em alguns destes trabalhos. Ana Loforte*¹ ressalta que no contexto de sua investigação na periferia de Maputo a forma principal de casamento ainda é realizada por meio do lobolo. E tanto os pais como os jovens noivos são favoráveis ao lobolo, porque por meio da intermediação dos bens, ele garante a ligação das unidades domésticas às redes de alianças que são simbolizadas pelo valor do lobolo, que por sua vez representa o próprio valor da mulher, ou, justamente o preço da noiva. Como ainda salienta a autora, o alto preço do lobolo encorajaria os homens a trabalharem arduamente revelando a sua capacidade como provedores, e por consequência os levando a valorizar a mulher conquistada por tantos esforço e, portanto, a “respeitá-la como um bem que não é facilmente adquirido” (131)

Vê-se, assim, que a instituição pré-colonial permanece viva em ambiente moderno, conectada a estruturas profundamente enraizadas para a reprodução social em seu sentido
mais amplo. Não é por outro motivo que lobolo passou a interessar também aos demiurgos
do novo estado socialista, e não apenas aos antropólogos, justamente pela sua prevalência e articulação como dispositivo regulador do matrimônio, da filiação, da transmissão de
prioridade, e das próprias oportunidades de reprodução material/social. Como veremos a
seguir, quase que como os antropólogos, os ideólogos da FRELIMO parecem ver no casamento e no parentesco o núcleo duro da própria ordem social.

Libertação Nacional
O Estado Nacional Moçambicano surge de modo independente em 1975, após violenta luta
anticolonial liderada por Eduardo Mondlane, e em seguida por Samora Machel. (Fry 2001;
Honwana 2002). Em 1974, a Revolução dos Cravos em Portugal precipitou o fim da guerra,
considerada ponto de honra para o regime salazarista (Cabaço 2009). Logo em seguida
realizaram-se negociações e por fim o acordo de Lusaka, na Zâmbia, que criou um governo
misto de transição. Em 1975, finalmente, Moçambique estava livre. Na medida em que toda a luta desenhou-se contra o pano de fundo dos anos intensos da Guerra Fria, o principal apoio conseguido pela FRELIMO na luta, e depois na consolidação do governo, veio do bloco soviético e da República Popular da China, o que reforçou a tendência socialista do novo governo, que se proclamou marxista, anticolonial, antirracista, antitradicionalista. (Geffray 1991).

Ora, a FRELIMO buscava apagar da vida social moçambicana esses aspectos, como se lê
no discurso de Samora Machel:
“Em nome da tradição, faz-se oposição a tudo o que é novo, diferente e estrangeiro. Deste modo, impede-se todo o progresso e a sociedade sobrevive de forma perfeitamente estática. A mulher é considerada um ser humano de segunda classe, sujeita a prática humilhante da poligamia, adquirida através de uma oferta a família dela... e educada para servir passivamente ao homem”. (Samora Machel, 1970. Citado em Honwana 169-170).

Tal contexto histórico nos ajudará a entender o desenvolvimento das políticas culturais
moçambicanas levadas a efeito pela FRELIMO, assim como as tensões e conflitos, configurados justamente como lutas culturais e, portanto políticas e também materiais em torno da tradição e dos “usos e costumes”. Dentre esses “usos e costumes” o lobolo, conhecido na literatura etnográfica como o “preço da noiva”, é aspecto central e estruturante das relações de gênero, assim como elemento fundamental para reprodução das estruturas básicas da vida social, vale dizer simbólicas, familiares e mesmo políticas, de parte importante da população. Localizada nesse entroncamento entre “tradição” e “modernidade”, o lobolo ao mesmo tempo é objeto de intensa disputa em torno das representações da nação.

A Emancipação Feminina e o “Homem Novo”
Após a vitória em 1975, e mesmo antes, nas chamadas “zonas liberadas”, a FRELIMO, buscou
implementar políticas culturais e educacionais em torno da construção do “homem novo”
moçambicano, emancipado das amarras do colonialismo, mas, talvez, de modo mais
importante do “feudalismo”, do “tribalismo” e do “patriarcalismo”. Como indica Salvador
Zawangoni , o projeto de sociedade da FRELIMO foi definido e elaborado no I Congresso do
partido em Dar-es-Salam, na Tanzânia de Julius Nyerere (hoje nome de uma importante
Avenida em Maputo) em 1962, ano em que a organização foi fundada. A fim de derrotar o
colonialismo, militarmente e ideologicamente, a FRELIMO adotou 17 resoluções, dentre as
quais a de número 6, que dizia ser a tarefa da emancipação “promover por todos os métodos o desenvolvimento social e cultural da mulher”. Em 1968, na Primeira Conferência do Departamento de Educação e Cultura foi aprofundada a política estratégica da FRELIMO em torno de dois eixos: A Nova Sociedade e o Homem Novo. Para a consecução desses objetivos, determinados comportamentos culturais, entendidos e nomeados pelo regime colonial como “usos e costumes” deveriam ser extirpados. Tais “usos e costumes” seriam a marca da distintividade cultural, substantivada com o concurso da razão etnológica (Amselle 1998) ,na produção da diferença colonial, a partir do repertório de traços culturais ou étnicos, que na vigência do colonialismo prosperavam sob o regime do indigenato e seus análogos, como discutem (Macagno 2001; Thomaz 2002).

A FRELIMO, no processo de reconversão política e subjetiva desse novo sujeito moçambicano, histórico e pós-colonial, em oposição aquele outro, imobilizado como primitivo (ou o nativo ficcionalizado pela antropologia clássica como “fora da história”), promove intensa campanha de desmoralização ou “combate político” ao “tradicionalismo”. A questão, como aponta com perspicácia Jose Luís Cabaço, seria como construir uma nova cultura, enraizada nas tradições culturais do povo sem, entretanto “ré-etniciza-lo”. Nas palavras de Samora Machel, seria necessário criar-se uma “personalidade africana e revolucionária” como aprece na belíssima declaração de independência moçambicana (1975).

Sabemos também que desde muito cedo no processo revolucionário, seus principais
lideres, com o protagonismo visionário de Samora Machel, preocupavam-se com a questão da emancipação da mulher. Como me esclareceu em Maputo um interlocutor altamente
qualificado, a FRELIMO entendia que não havia como vencer a guerra anticolonial se não
conquistasse para suas fileiras ideológicas e militares também as mulheres, que não apenas
serviriam de apoio, o que ocorreu num primeiro momento, mas seriam combatentes armadas e reprodutoras ideológicas dos princípios revolucionários e do “homem novo”.

Na abertura da Primeira a Conferência da Mulher Moçambicana realizada em marco
de 1973, portanto antes ainda da independência, Samora Machel realizou discurso histórico e muito conhecido e citado posteriormente, “A Libertação da Mulher é Uma Necessidade da Revolução, Garantia de sua Continuidade, Condição do seu Triunfo”, publicado em 1974
(portanto, antes do fim da guerra de libertação) na “Coleção Estudos e Orientações – Ediçõesda FRELIMO”. A edição que consultamos na Biblioteca do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, traz na capa a imagem do Destacamento Feminino da FRELIMO, criado em 1966, e base para a criação posterior da Organização da Mulher Moçambicana (OMM). Esse discurso de Samora tornou-se referência programática para a ação da FRELIMO e da OMM, e certamente orientou os debates sobre a mulher e a família nos anos seguintes.

A grande acuidade de Samora em correlacionar, ainda nos anos 70, a emancipação da
mulher à emancipação nacional, produziu em Moçambique uma situação na qual, em certa
medida, grandes passos foram tomados na superação das desigualdades de gênero.
Entretanto, a compreensão sobre o que seria a emancipação feminina, e qual a sua conexão
com a emancipação pós-colonial deve ser cuidadosamente considerada. Samora pergunta-se
retoricamente, e com o seu vigor habitual, porque deveríamos preocuparmo-nos com a
emancipação da mulher e, certamente nesse momento dirigia-se às audiências masculinas,
que resistiriam à ideia de igualdade entre os gêneros. “Como triunfar a revolução sem libertar a mulher?” e “como fazer então a revolução sem mobilizar a mulher?”.

“A emancipação da mulher não é um ato de caridade, não resulta duma posição humanitária
ou compaixão. A libertação da mulher é uma necessidade fundamental da revolução, uma garantia de sua continuidade, uma condição de seu triunfo. A Revolução tem por objetivo
essencial a destruição do sistema de exploração, a construção de uma nova sociedade
libertadora das potencialidades do ser humano e que reconcilia-se com trabalho, com a
natureza. É dentro deste contexto que surge a questão da emancipação da mulher”! (Machel5).

Samora, como Engels*², compara a opressão da mulher à opressão capitalista, e também, de modo original associa a opressão colonial à alienação da mulher (8). Seguindo o modelo
histórico marxista-evolucionista, Machel, nesse momento, aponta para a exploração do
trabalho da mulher: “Possuir mulheres é possuir trabalhadores, trabalhadores gratuitos,
trabalhadores cuja totalidade do esforço do trabalho pode ser apropriada sem resistência pelo esposo, que é amo e senhor” (8). Daí explica-se a poligamia e o lobolo, por razões de interesse material, baseados e sustentados pela subordinação política da mulher. Assim, a primeira opressão que a mulher enfrenta é de fato caracterizada como uma opressão de gênero, que é análoga à opressão de classe, tal como em Engels. Por meio do lobolo e do levirato*³, a mulher é assim comprada e herdada, “como se fosse um bem material e fonte de riquezas”. Sob o império do obscurantismo, e do feudalismo tradicional, a mulher é super-explorada pelas relações tradicionais de gênero, e disso seria preciso libertá-la.

A contradição antagônica fundamental seria, dessa forma, não entre a mulher e o
homem. Samora não ataca, assim, diretamente o patriarcado como um sistema de privilégios masculinos, baseado na diferença/desigualdade entre os sexos, mas aponta para o antagonismo entre a mulher e a ordem social, ou entre “todos os explorados” e a ordem social (nesse caso, capitalista e colonial). Assim, a condição da mulher pode ser aproximada da condição do sujeito colonial e do trabalhador explorado, sendo este o aspecto fundamental e o eixo da opressão. Só pode haver assim emancipação da mulher se florescer a revolução social, que seria capaz de reconstruir a sociedade em bases novas. A revolução não pode triunfar sem a libertação da mulher, e não pode haver libertação da mulher sem a revolução.

Mas não nos confundamos, a emancipação da mulher não significa a constituição de
uma “igualdade mecânica”, muito menos a aproximação dos padrões de comportamento da
mulher “emancipada” ocidental: “Que bebe, fuma, usa calças e minissaias, que se dedica a
promiscuidade sexual e a não ter filhos”.

Como Isabel Casemiro e Ximena Andrade (1992) apontam, diante desse contexto, o
feminismo é acusado de ser uma reivindicação burguesa (humanitária), sendo que a ortodoxia do marxismo africano rejeitava a emancipação da mulher – da opressão caraterística de gênero/patriarcado - por tal opressão ausentar-se, do ponto de vista dos ideólogos frelimistas, das relações de produção. Para marxismo, o campo de combate é a economia, sendo o feminismo, no mesmo discurso de criação da OMM em 1973, excomungado por Samora. Posteriormente o feminismo foi, e ainda é em grande medida, considerado estranho à África, e uma forma de imperialismo cultural.**¹

Apenas participando do processo produtivo, as mulheres poderiam efetivamente se
libertar do obscurantismo, vale dizer do particularismo, alcançando a universalidade como
sujeito. Como nos disse em entrevista a presidente atual (2010) da Organização de Mulheres
Moçambicanas, Paulina Mateus, a OMM não é e nunca foi uma organização feminista, porque
não vê o homem como inimigo da mulher, mas ambos estão lado a lado lutando contra o
inimigo comum.

A Mulher e o Estado
É bem evidente, para outros contextos que as políticas de estado afetam (ou se ocupam) das mulheres, e que os estados nacionais, demostram particular interesse em legislar sobre a sexualidade, a vida de família e a natureza da mulher. H. Moore aponta como nos países
socialistas esta vinculação se estabelece com o propósito explícito de promover “the
emancipation of women and their incorporation into productive activities at the centre of the political agendas” (Moore, 1988: 136). Com o vemos perfeitamente exemplificado no caso moçambicano. Entretanto, o interesse da regulação em nosso caso parece ser ainda mais penetrante, e nos obrigaria a um posicionamento no debate sobre o lócus fundamental do poder, que se apoia na regulação da posição da mulher.

Mas a FRELIMO atribuía imenso valor à família e parecia reconhecer a diversidade da
família moçambicana, e as diferenças entre as regiões patrilineares, matrilineares,
muçulmanas, católicas/cristãs, etc. O reconhecimento dessa diversidade não significava a
renúncia ao poder regulatório, em vias de ser exercido pelo Estado após a vitória, pelo
contrário, há o apelo para que os casamentos sejam registrados no modo civil, ou seja, se
submetam a regulação do Estado, em oposição a modos tradicionais ou religiosos. Assim no
artigo “Por que razão o conservador não registou o seu próprio casamento?” vemos a
ridicularização da figura do “conservador” que se apega aos modos tradicionais, em vez de
confiar no Estado para a administração e regulação da vida familiar institucional. Desse ponto de vista, se ressalta nesse texto a importância do registro civil como fonte de informações e a necessidade de reconhecer-se, que a despeito da importância da família ampliada, o princípio a ser respeitado seria “o da voluntariedade por parte dos próprios cônjuges”, o que vinte anos depois seria contemplado na Nova Lei de Família.

Observemos que esse é um momento de profundas transformações, vividas também
como uma “crise familiar”, crise de autoridade, de legitimidade, e de um esforço de
substituição das hierarquias tradicionais, pelas novas diretrizes do Estado socialista. O que não ocorreria sem ansiedade. No texto “Mamã, a propósito, para a semana caso-me”, há a
descrição de uma reunião sobre justiça popular no Bairro de Xipamanine (1985), cujo tema
seria “A Família”. Em determinada altura uma senhora, com “capulana e mãos nos quadris”
levanta-se.

“A propósito dos jovens... então um filho que eu criei com todos os sacrifícios, chega um dia a casa e diz-me assim: Mamã, para a semana caso-me! E quando quero saber pelo menos com que é que ele se casa, ele diz-me que é com uma miúda da Matola... Quer dizer, os nossos filhos já são independentes de nós? Nós os pais já não merecemos consideração ou é permitido pelo registro que a família não acompanhe o processo de casamento lá, porque o filho tem 21 anos! Assim não esta certo! Este casamento sem envolver nem pai nem mãe, é casamento?”. (Justiça Popular, no. 11, 1986).

Ora, é a convicção de que família é o laboratório da vida social, sua célula elementar,
onde se fabrica, tecem e sustentam as relações sociais mais estruturantes da vida social, como espaço de formação e de imposição de vínculos sociais, fortes e imorredouros (ou, como diria Meillassoux**², vitalícios), universais e convergentes para o amálgama social de cultura e poder, que parece estar na base da vontade de construção do Estado nacional, e da nova sociedade nacional. O Estado, e suas forças hegemônicas se esforçam para construir a família em moldes determinados: não poligâmica; universalmente inscrita no registro civil; realizada por um ato voluntário, entre duas pessoas maiores do sexo oposto. Por fim, o que parecemos ver é necessidade de regular ao máximo, e de retirar do âmbito do consuetudinário, dos usos e dos costumes, e do diverso e do étnico, e inscrever na universalidade da lei nacional e pós-colonial, os mecanismos discursivos e políticos de regulação e conexão entre a vida privada e a vida pública, a natureza e a cultura, a família e o Estado.

Bibliografia

Amselle, Jean-Loup. Mestizo Logics. Anthropology of Identity in Africa and Elsewhere. Stanford. Stanford University Press. 1998.

Cabaço, José Luís. Moçambique. Identidade, Colonialismo e Libertação. São Paulo. Editora
UNESP. 2009.

Declaração de Indepêndencia. Lourenço Marques (Moçambique) 25 de junho de 1975. CEA –
UEM Pasta No. 158/N.

Engels, F. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. São Paulo. Editora Escala. 2009.

Fry, Peter (Org.). Moçambique Ensaios. Rio de Janeiro. Editora UFRJ. 2001.

Geffray, Christian. A Causa das Armas. Antropologia da Guerra Contemporânea em
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Notas

¹ Professor Adjunto no Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da mesma universidade. Bolsista de Produtividade do CNPq.

² A pesquisa foi conduzida com apoio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) sob a rubrica do Edital MCT/CNPq/SPM-PR/MDA Nº 57/2008 Categoria 1, para Estudos de Gênero e Feminismo. A investigação baseou-se na realização de entrevistas in loco, na observação de campo em Moçambique e na leitura de determinados documentos, encontrados no Arquivo Histórico de Moçambique e na Biblioteca do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, notadamente diversos números da revista Justiça Popular, publicados como Boletim do Ministério da Justiça da República Popular de Moçambique, entre 1980 e 1986.

³ Quero agradecer a Fernando Rosa Ribeiro, Omar Ribeiro Thomaz e Luiz Henrique Passador, que tiveram papel fundamental na formulação original da pesquisa e em seu desenvolvimento. Obviamente que eventuais erros e omissões são de minha inteira responsabilidade.

*¹ Ana Loforte. Gênero e Poder entre os Tsonga de Moçambique.Lisboa. Ela por Ela.2003.

*² Em “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” , o fim do chamado “direito materno” aparece como um duro golpe para a própria humanidade das mulheres. Tornadas agora servas do homem, e instrumento de acumulação de riqueza. Em conexão estreita com a invenção da monogamia e da exclusividade sexual, o “ciúme do macho”, e o sentimento de propriedade privada, caminharam lado a lado. Desmoralizando a ordem social burguesa Engels aponta para como o desenvolvimento da propriedade, e do Estado, implicam na subordinação da mulher, em paralelo a subordinação da classe trabalhadora e de modo perfeitamente análogo (Engels, 2009).

*³ O Levirato aparece na etnografia com a “herança da viúva”. Morrendo um irmão, outro lhe herda a esposa.

**¹ Marnia Lazreg. “Decolonizing Feminism”. In . ___ . OYÊWÙMÍ, O. (Ed.)African Gender Studies. A Reader. Palgrave. 2005. Pp. 68-80.

**² Claude Meillassoux. Mulheres, Celeiros & Capitais. Porto. Edições Afrontamento. 1976.